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Esse é o “entrelinhas da arte”, uma newsletter e podcast, criado por mim, Luiza Adas, que te traz reflexões e referências sobre arte e a vida de forma geral. Hoje, compartilho uma reflexão que me veio no meio de um sábado a noite, no bar, sobre a possibilidade de transformação que a arte pode ter.
Quantas vidas a arte é capaz de mudar?
Era sábado, por volta das 21:30. Tempo agradável, cerveja gelada, papo bom ao lado de uma das minhas melhores amigas. Uma banda tocava brasilidades no bar em que estávamos, e nós, entre uma fofoca e outra, cantarolávamos as músicas que tocavam. Era vez do “Zé do Caroço”, belíssima música de Leci Brandão, que ficou ainda mais famosa na voz de Seu Jorge.
A música descreve a história de um homem que nos anos 70, no Morro do Pau da Bandeira, se tornou um líder comunitário, por usar um alto-falante para levar informações e fortalecer sua comunidade, anunciando quando havia vacinação, matrícula na escola, e outras informações importantes para a população. Pra mim, a música é a própria voz do “Zé do Caroço". É a esperança em forma de arte, dizendo que existe, no mundo, quem almeje o “despertar”, a transformação.
E como em uma cena de filme, no bar em que estávamos, aparece uma criança. Uma criança que, com suas roupas sujas e chinelo surrado, se encantava com a música. Com seu brilho nos olhos, ele parecia nascer como uma esperança para o mundo, buscando um lugar que ele pudesse pertencer, que ele pudesse ocupar. Ele largou no chão as balas que vendia, pegou os instrumentos dos músicos e começou, com a seriedade com que brinca uma criança, a se apropriar do ambiente ali disposto, com uma intimidade invejável. Era ele, os instrumentos e mais ninguém.
Nessa hora lágrimas brotaram nos olhos da maior parte das pessoas que estavam no bar. Lágrimas de quem estava prestes testemunhar um amor a primeira vista. Fomos contagiados pela energia de Samuel, esse menino doce que só com o olhar encantou a todos. Seguro de sua performance, exigiu aplausos como se fosse um integrante do grupo e tivesse tocado a noite inteira. E nós, apreciadores de sua arte, parecíamos viver dentro das linhas de uma poesia. Parecia não, estávamos. Samuel era a personificação das novas músicas que queríamos ouvir, do futuro que queríamos estar vivos para presenciar. Uma orquestra de olhares em torno de um momento, como em uma composição conjunta.
Ao ver essa cena, pensei “quantas vidas a arte é capaz de mudar?”. O que viria depois daquilo? Será que o Samuel sairia ileso desse contato com a arte, ou será que ele havia sido contagiado de forma irreversível? A música guardava um lugar para seu talento, ou será que depois da apresentação ele pegaria suas balas e nada mudaria?
É difícil adivinhar uma resposta para essas perguntas, principalmente pensando que se trata de Brasil, um país que desconhece seus talentos por não ter a oportunidade de conhece-los. A condição social que envolve nossas crianças impossibilita, na maior parte dos casos, que elas possam simplesmente ser crianças, explorar seus gostos, vontades, sonhos. Mas existia algo naquele olhar, naquele encantamento ingênuo, que me fez acreditar que a arte abriu, no Samuel, um espaço para onde ele pudesse desabrochar.
Vi nascer ali a tão falada transformação que a arte pode causar no outro, da forma mais visceral possível. E essa transformação não estava acontecendo em uma galeria de arte, nem em uma sala de música clássica, muito menos em um espaço institucional. Estava na rua, em um bar qualquer, ao som da percussão, da voz do cantor que proferia o “Zé do Caroço”.
Após a saída de Samuel, o vocalista falava coisas que pouco foram ouvidas por quem estava no bar. Fiquei com uma certa dó, mas depois pensei: talvez ele realmente não tenha sido escutado pelos bebados do bar, mas uma pessoa, em especial, um futuro o ouviu de maneira profunda. Talvez aquele vocalista anônimo tenha mudado uma vida. E isso é maior do que qualquer número de pessoas que o escutou naquele dia.
Quantas vidas a arte é capaz de mudar? Quantos “Samueis” não tem espalhados por aí, capazes de se contaminar com a arte, e de posteriormente contaminar outras tantas vidas, através do sentir? Samuel me mostrou que brincadeira é coisa séria. É no sonhar, no se permitir experimentar, que nasce a esperança de viver nossos sonhos, ainda que inicialmente eles sejam sonhos desconhecidos por nós.
A arte, definitivamente, muda vidas, e essa cena mudou a minha.
Olha isso:
Falando em brincadeira de criança, quero trazer uma referência de arte que, para mim, é simplesmente espetacular. Children’s Games é uma série de vídeos do artista belga-mexicano Francis Alÿs, que investiga como as brincadeiras infantis refletem as diferentes culturas e realidades ao redor do mundo.
Ao longo de suas viagens, Alÿs captura, com um olhar etnográfico, a maneira como crianças utilizam os recursos locais para inventar seus próprios jogos. Seus filmes revelam não apenas a criatividade inerente ao ato de brincar, mas também seu papel como expressão de resiliência, especialmente em regiões marcadas por conflitos.
O mais fascinante é perceber como essas brincadeiras são, ao mesmo tempo, aquilo que diferencia e conecta essas crianças. No improviso de cada jogo, há um testemunho silencioso da infância como espaço de resistência – um lembrete de que, mesmo diante da adversidade, imaginar, criar e brincar são gestos poderosos.
Grifo da semana
Quem me acompanha já deve ter me ouvido falar sobre o Clube da Arte. Assim como existem “clubes do livro”, o Clube da Arte é um projeto que criei onde, a cada mês, escolhemos um tema e exploramos esse assunto por meio de diferentes experiências culturais. No mês de março, debatemos "o que é beleza na arte", com uma visita à Pinacoteca de SP e ao ateliê da artista Ana Michaellis.
✨ E A MELHOR PARTE?
ABRIL TA AÍ E VOCÊ PODE PARTICIPAR DA PRÓXIMA TURMA! ✨
Tema:"Por trás da arte: Entre o Institucional e o Independente".
Este mês, vamos mergulhar nos bastidores do circuito da arte, entendendo o que é afinal, arte institucional e arte independente. Nos encontros vamos refletir sobre como se articulam os agentes que atuam nesse mercado – galeristas, curadores, colecionadores, artistas e tantos outros. Além disso, vamos discutir questões mais subjetivas, como os desafios e as motivações por trás das escolhas dos artistas, os impactos dessas estruturas na produção artística e o que essas dinâmicas revelam sobre a arte e a sociedade. Para isso faremos os seguintes encontros:
📅 12/04 – Galeria Raquel Arnaud, sábado, às 10h.
Visitaremos a Galeria Raquel Arnaud para entender o funcionamento de uma galeria de arte: como um acervo é montado, o que faz de uma galeria um espaço de referência institucional e quais são os bastidores desse universo. Para quem não sabe, a Galeria Raquel Arnaud é uma das mais tradicionais e importantes galerias de arte do Brasil. Teremos acesso a espaços normalmente pouco visitados pelo público e uma conversa especial com uma das integrantes da galeria sobre o dia a dia desse ambiente.
🎨 26/04 – Bate-papo com a artista Yohannah de Oliveira, sábado 10h.
Se antes conhecemos um espaço de arte institucional, agora vamos explorar o universo da arte independente. Nesse encontro, teremos uma troca enriquecedora com a artista Yohannah de Oliveira, que já passou por galerias, mas hoje opta por seguir uma trajetória independente. Vamos entender os desafios, as oportunidades e as razões por trás dessa escolha.
📱Após se inscrever você terá acesso a um grupo no whatsapp, em que colocarei informações sobre os encontros e referências para você se aprofundar nos temas abordados.
E o valor?
O valor é de R$ 285,00 (inclui os dois encontros). Não é possível comprar os encontros separadamente. E sim, o valor é abaixo do praticado para esse tipo de atividade, mas a ideia é que nesses primeiros meses vocês possam conhecer o projeto para criarmos uma comunidade em torno dele!
Se quiser participar basta só responder este e-mail, e te informarei se ainda temos disponibilidade, de acordo com o número de inscritos.
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