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Esse é o “entrelinhas da arte”, uma newsletter e podcast, criado por mim, Luiza Adas, que te traz reflexões e referências sobre arte e a vida de forma geral. Hoje, compartilho uma reflexão sobre a relação que geralmente estabelecemos entre descanso e merecimento.
descansar sem merecer
“Não tô afim de sair, trabalhei muito essa semana.”
“Tenho feito tanta coisa ultimamente, acho que mereço umas férias...”
“Estou tão cansada que me permiti dormir à tarde...”
Essas são algumas frases que tenho ouvido sair da minha própria boca nos últimos tempos. Sempre que surge a vontade de descansar, ela vem acompanhada de uma justificativa. Como se eu precisasse provar que mereço essa pausa. De fato, eu tenho feito muito: novos projetos, parcerias, um programa de TV, uma coluna em um veículo importante… Quem é autônomo sabe bem como é: estamos sempre correndo atrás, equilibrando vários pratinhos ao mesmo tempo. E isso, claro, cansa.
Mas será que o descanso precisa estar sempre atrelado ao excesso de trabalho? Será que só podemos parar quando chegamos ao nosso limite? Essa pergunta tem me acompanhado desde o ano passado. Há alguns meses atrás, eu vivia uma fase mais tranquila profissionalmente, e mesmo assim me sentia exausta. Isso me frustrava e me levava a uma pergunta diária: “Por que me sinto tão cansada se não estou fazendo tanto quanto já fiz antes?”. Mesmo cansada, resistia à ideia de descansar, como se estivesse em guerra com meu próprio corpo. E não vou mentir, hoje, que estou trabalhando muito mais, me sinto mais "autorizada" a descansar do que naquela fase anterior.
Ao trazer isso para o consciente, me pergunto: será que preciso fazer por merecer para viver o descanso? Preciso mesmo acumular tarefas e chegar no esgotamento para me permitir uma pausa? Não seria essa lógica meritocrata e oposta àquilo que eu mesma prego? Sim, sem dúvidas. Mas na minha resposta, tentarei ser um pouco mais gentil comigo, do que tenho sido recentemente.
Vivemos em uma sociedade em que a recompensa sempre vem acompanhada da necessidade de um esforço. Aprendemos que temos que pagar um preço caro para chegar onde queremos. Quase como se o descanso também tivesse um valor monetário, que precisa ser adquirido com o trabalho. Por vezes, me pegava lendo livros e justificando a mim mesma: “isso faz parte do meu trabalho, então tudo bem eu tirar um tempo para ler”. Quando será que não posso apenas ler para meu prazer, sem ter que servir a uma função utilitária?
A arte me ensina muito sobre isso, e sinto que, na maior parte das vezes, não coloco em prática o que ela me ensina. A arte não precisa necessariamente servir a algo. O que a difere das demais áreas criativas, como o design e a arquitetura, é justamente sua possibilidade de ser “a arte pela arte”. De não precisar de uma função utilitária que justifique sua existência. Ela pode apenas ser. Inutilmente ser, no melhor sentido da palavra. Ela pode, sim, servir a uma causa ou a uma razão específica, assim como também pode ser aquilo que o artista quiser fazer dela— até algo sem nenhuma função.
E se aplicássemos essa forma “arte de pensar” em nossas vidas? Será que não nos permitiríamos descobrir coisas sobre nós tão fascinantes quanto aquelas que descobrimos quando em contato com a arte? Sem dúvidas. Sinto que é justamente no “nada” que reverberam as melhores ideias e conversas de nós com a gente mesmo. E aqui não estou propondo que esse ócio precise resultar em algo. Isso iria contra o que eu mesma estou defendendo neste texto. Mas o que, sim, proponho é que possamos viver nossos vazios sem culpa. Afinal, somos feitos de vazios, de lacunas, de “nadas”, e na mesma medida que isso é o que nos torna humanos e o que nos apavora. Nos permitir viver nossos vazios é nos permitir experienciar a humanidade que existe em nós.
Estamos o tempo todo tentando ocupar os vazios com informação, o silêncio com barulho, o tempo com atividades. E, quando temos o tempo para viver a vida com mais tempo, nos sentimos angustiados. Tentamos tapar os buracos com qualquer coisa para fugir de nós mesmos. E se transformássemos o vazio em espaço? E o espaço em uma maneira de nos escutarmos, para sentirmos. Para não saber. Para simplesmente estar.
Permitir que o vazio exista, nos faz descobrir que não há nada de errado com ele — pelo contrário: a partir dele podemos olhar para quem realmente somos longe das interferências da vida cotidiana.
Permitir-se pausar não é um ato de fraqueza, é um gesto de liberdade. Uma forma de reconhecer que a vida é mais do que produzir. Que o valor da existência não está condicionada ao nosso desempenho. Podemos simplesmente ser. Sem função, sem utilidade, sem pressa. Entender isso é uma das mais belas e profundas formas de libertação.
Se permita descansar, se permita libertar, se permita ser.
Olha isso!
Semana de páscoa e com ela trago como referência a obra “Ovo Cósmico” da artista Regina Vater.
Será que o tempo que desejamos para as coisas é realmente o tempo que elas precisam? Essa obra é uma metáfora visual que me faz refletir sobre o ciclo do tempo e da vida.
Como algo tão simples quanto um ovo pode conter tamanha complexidade e mistério? Dentro dele, a vida pulsa, pronta para se manifestar de maneiras que não conseguimos prever. Sabemos o que ele é capaz de gerar, mas não sabemos como nem quando. Se chocarmos um ovo antes do tempo, tudo o que ele poderia oferecer pode se perder, encerrando quaisquer possibilidades de vida que nele habitam.
O tempo é essa força silenciosa e mágica que, assim como um ovo, é responsável por gerar os milagres da vida. “Ovo Cósmico” nos convida a reavaliar nossa relação com o tempo, a compreender que ele tem seu próprio ritmo e razão de ser. Afinal, o tempo não nos pertence, nós pertencemos a ele e entender isso é o primeiro passo para vermos florescer uma vida cheia de aprendizados.
Grifo da semana
Pra você, arte é barulho ou silêncio? O Grifo dessa semana é o vídeo que subi no meu canal do youtube, fruto do meu programa no Canal Arte 1, em que refleti sobre como o excesso e a falta de comunicação podem resultar no mesmo problema: a incompreensão. Falei sobre isso a partir de uma obra do artista Cildo Meireles, chamada Torre de Babel, que faz parte da coleção do Tate Modern em Londres!
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Tenham todas e todos uma excelente páscoa e uma ótima semana!
Lendo seu texto, imediatamente lembrei de uma frase de Jorge Luis Borges que volta e meia marca presença em minha vida: “Publicamos para não passar a vida a corrigir rascunhos. Quer dizer, a gente publica um livro para livrar-se dele”. Obrigado pelas reflexões trazidas.
Enquanto lia, fiquei pensando em como a gente foi ensinado a desconfiar do descanso.
A figura da pessoa que pausa — que simplesmente não faz — ainda carrega um rótulo pesado: preguiçosa, vagabunda, improdutiva. Como se o não fazer fosse um desvio de caráter.
Já escrevi sobre isso em alguma newsletter, nem lembro mais qual — mas o assunto volta, né? Porque o cansaço insiste, a culpa também.
Às vezes, só quero deitar no sofá e olhar pro teto. Mas aí vem a voz: “tá fazendo o quê aí parado?”.
Talvez a resposta seja: nada. E talvez o nada seja exatamente o que eu tô precisando naquele momento.
Teu texto me lembrou que descansar não precisa de legenda. E muito menos de permissão. Obrigado :)